quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Ensina-me a ler

Meu pai não chegou a completar o primeiro grau na escola. Mas lia Platão. Lia também Harper Lee, Orígenes Lessa, Malba Tahan, Érico Veríssimo e tantos outros livros que eu cresci vendo espalhados pela casa e também recolhia para decifrar. Meu pai tinha a caligrafia mais linda eu já vi, mas escrevia pouco. Nos vários anos em que morei longe dele recebi apenas uma carta (onde está? perdeu-se no tempo, na época não a valorizei, daria qualquer coisa para reencontrá-la.). Talvez por ter lido tanto na vida, ele se comunicava com extraordinária correção, sem erros de concordância. Na casa dos meus pais, mesmo com pouco dinheiro, sempre se pagou pelo menos uma assinatura de jornal. E mesmo tendo estudado pouco tempo, ou talvez até por isso mesmo, meu pai valorizava como poucas pessoas o conhecimento e a educação. Cresci ouvindo-o dizer que não estava aberta a discussão para a possibilidade de eu e meu irmão frequentarmos ou não uma faculdade. Ou iríamos ou iríamos, ponto final. E fomos. Ele teve o orgulho de assistir a colação de grau dos dois filhos.
Após o primeiro derrame que o acometeu, ele descobriu que não conseguia mais ler. Via as letras, mas não conseguia transformá-las em palavras. Lembro até hoje que ele e eu nos olhamos com absoluto horror no quarto de hospital, após ele ficar longo tempo olhando para uma página de revista que continha apenas um anúncio com letras enormes, erguer os olhos e menear a cabeça negativamente para mim.
Felizmente, com muita persistência, ele foi retomando e conseguiu voltar a ler, embora nunca mais com a mesma facilidade. Assinei várias revistas, comprei resmas de livrinhos de palavras cruzadas e procurei leituras mais fáceis. E ele foi se ajeitando como podia, lendo a mesma página várias vezes, até conseguir reter o sentido das palavras e a totalidade dos textos. Foi uma (mais uma) lição que o meu pai me deixou e hoje, 11 anos após ele ter nos deixado, ainda choro quando falo nele e o recordo com intensidade quando leio algo que sei que ele gostaria. Mas uma certeza eu tenho: ele só morrerá de verdade dentro de mim se algum dia eu deixar de ler.

3 comentários:

Cecilia Nery disse...

Que lindo, Denise. Me emocionei muito ao ler seu post. Seu pai era um homem de visão, sabia da importância do estudo e da leitura. Isso é grandioso. Meu pai tinha estudo e também gostava de ler, foi vendo-o comprar livros e acompanhando-o às bancas de jornais que passei a gostar mais dessa arte. Que bom. Somos duas felizardas. Beijos.

Denise disse...

Querida, vc se emocionou e eu chorei baldes ao escrever.Definitivamente, tem coisas que não dá para mexer... E concordo com você, somos privilegiadas por termos tido o exemplo. Obrigada pelo carinho. Beijão

Mi Müller disse...

Ah Denise que relato mais emocionante, me senti realmente tocada pela trajetória do teu pai, ela é prova de que a leitura faz tanto por nós, independente de gênero, raça, cor, escolaridade, credo ou seja lá qual rótulos mais as pessoas criem para si mesmas. Obrigada por compartilhar conosco esta história.
estrelinhas coloridas...